aplauso em um assento só

 

aquele dia, simplesmente aquele, em que a alvorada se desenhava trêmula sobre a pele do tempo, o vento de outono passava como uma história antiga, e embora o sol estivesse partindo, não puderam obscurecer o fulgor do instante nem ensombrecer os nossos corações. era como se o universo inteiro dançasse ao ritmo da minha memória. aquele momento em que o homem tenta, em vão, conter o tempo entre os dedos e remodelar as lembranças como Van Gogh teima em colorir a realidade com tons mais densos, mais felizes, mais seus. alguns desejam viver um só traço de eternidade nas águas cintilantes de algum paraíso burguês, sob o verniz caro de um verão de cartão-postal. mas, ao final, tudo se dissipava como névoa de fim de tarde, tão turvo e inconstante quanto os corações à beira da despedida.

o meu instante, ao contrário, aconteceu no mais sagrado de um casinha: um quintal de chão vivido, onde as árvores guardam histórias em suas cascas e o ar conserva, com pudor, o cheiro das vozes que amei. Foi ali, nesse relicário feito de terra e afeto, que vi meu primo. E ao redor dele, como fiéis satélites, as almas que moldaram meu coração. E com ele estava ela, a estrela silenciosa e luminosa que só ele compreendia. E, mesmo que minha razão jamais alcance a origem de tanto brilho, eu aceitei ´- com a fé de quem crê sem ver - que assim como ele a acolheu em seu espírito, eu o guardei entre os meus entes mais queridos.

Não sei em que tempo nasceu em mim o desejo de escrever-lhe ou de saber-lhe os passos. Talvez meu primo sempre tenha sido uma inquietação, um nome sussurrado pelas fotografias da infância, uma presença ausente que habitava os retratos e as risadas alheias. “Michel”, diziam. E eu ouvia, ainda menino, com olhos famintos por pertencimento, desejando estar ali, entre aqueles instantes que não me couberam. Conto nos dedos as vezes que estive ao seu lado, e das histórias tristes, pouco ou nada me lembro, pois talvez nunca me tenham sido contadas. Mas, ainda assim, ele me deu um fragmento de eternidade: uma memória clara, entre as minhas preferidas, como um relicário que guardo junto ao peito. Primo, se lês estas palavras, saiba: havia dias em que eu não ria com tanta honestidade, não inventava graças para quem amo. Vocês me devolveram algo que me faltava - uma narrativa de alegria genuína.

Havia tanto a perguntar, tanto a dizer, tantos risos a provocar. Mas permaneci quieto, como se o silêncio fosse a única forma de não espantar aquele momento raro. E hoje me pergunto: por que deixei que a timidez me velasse a alma? Talvez por saber o quão distintas são as ideias que habitam os rostos que amo, preferi silenciar a acender um debate onde só cabia o riso. E foi o riso, afinal, que nos salvou. Não me lembro do gosto da comida, nem senti fome. Tudo em mim queria apenas estar. Até as pequenas dores se dissolveram. Rezei para que tudo desse certo. Às vezes a vida nos presenteia: com borboletas no ventre, com esse leve susto do paraquedas que abre no último segundo, com esse assombro que os antigos chamavam de perfeição.

Aquele episódio veio no atraso, e por isso mesmo foi melhor. O tempo se distorceu diante de mim. O presente, o passado e o futuro entrelaçaram-se como vinhas em uma treliça. Diante de mim estavam as três chaves do meu espírito: aquele que dividiu comigo a infância, aquele que sempre viveu na inquietação do meu pensamento, e aquela que surgiu de forma passageira, em rapidez, que esteve presente no dia em que, sem querer, eu soube o que era amar. Ela, que vi por apenas alguns segundos, e ninguém ao redor soube o que significava. Mas eu soube. Porque há em mim esse traço incurável: amar quem é real. Não amo vozes nas telas, nem vultos famosos que desaparecerão com a próxima estação. Amo o que sangra. Amo o que permanece mesmo quando o mundo vira a página.

Foi o aniversário dele. E tudo que desejei foi dizer o que agora escrevo. Não o ouvi tantas vezes no rádio, mas bastava uma só para que algo em mim florescesse: orgulho. Um orgulho silencioso, como o de quem observa de longe e respeita. Imaginava o quanto ele precisou lutar, o quanto estudou, quantas madrugadas sem sono para chegar onde chegou. Reconheço sua nobreza, a lucidez com que olha as feridas do mundo, e a coragem de não se curvar. Como seria mais justo o mundo com mais homens como ele, que não se escondem do real. Desejo que siga, que não pare, que insista, que avance. E eu, neste canto do mundo, sigo também, com minha pequena luta. Li alguns de seus escritos, porque queria conhecê-lo. A idade nos separa, a geografia nos distancia, mas o sangue 'esse laço invisível' nos aproxima com uma força que nem o tempo dissolve.

Não sei quando começou minha vontade de saber quem ele era, só sei que o pouco que conheci me bastou para querer mais. Mesmo à distância, meu afeto não diminui. Amo-o como se já o tivesse por inteiro, como quem ama uma ruína bela ou uma carta antiga, mesmo sem tê-la lido toda. Família é história, e recusar a história dos nossos é recusar a si. Já perdi tantos que queria ter amado mais, que o vento levou antes que eu dissesse qualquer coisa, quando o último pôr do sol se deitou sobre os rostos deles. Mas a história dele ainda pulsa. Está viva. É agora.

E se esse agora foi possível, cresce em mim o desejo de mais. Mais momentos, mais presenças. Mas sei que cada um tem sua estrada, sua liberdade de correr entre pedras ou pastos. A vida não se controla, apenas se ama. Desejo-lhe isso: que não se perca de si mesmo, que não ceda ao cansaço. Sempre há um caminho, mesmo quando não parece. Há poesia na vida, há aventura no amor. E, como sempre digo, cada ser humano, ao menos uma vez, merece ser aplaudido de pé. Aproveitar o sopro da existência, entregar tudo de si, receber tudo de volta. Desejo a todos esse amor absoluto, e a ti, primo, desejo todo amor que houver nesta terra.

Se estivéssemos em um teatro, e só eu estivesse na plateia, num assento solitário, eu te aplaudiria de pé. E diria, com os olhos marejados: gostei de te ver outra vez, nesta peça realista e bela que chamamos de vida.

Com toda a ternura que a alma pode conter,

de todo meu coração,

a meu primo.

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