Testamento de um Filho à Sua Mãe e à Mãe de Deus

Mãe,

Não escrevo estas palavras para adornar o tempo, mas como quem, à beira da solidão, deixa um vestígio de si antes que o vento apague tudo. Cada sílaba aqui sangra. Não é uma carta, é testamento. E se falo, é porque talvez amanhã o silêncio me tome por inteiro.

A humanidade inteira conhece a cruz. Está estampada em paredes, rosários, corpos... mas quantos realmente a contemplam com o coração dilacerado que ela exige? Ficam na estética do símbolo, esquecem que ali suspendeu-se o próprio Deus. E que, aos pés desse madeiro, sangrou com Ele uma mulher. Não uma qualquer. A Mãe.

Maria: silente, rasgada por dentro, mas de pé. O mundo desabava em gritos e açoites, e ela permanecia, firme como raiz no invisível. A espada prometida por Simeão transpassava-lhe a alma. No seu olhar, a dor de todas as mães do mundo: das que enterram filhos, das que são esquecidas, das que não têm colo para chorar.

Foi ali, no alto do Gólgota, que o Filho, entre o céu e a terra, ofertou-nos a sua Mãe. “Eis aí tua mãe”, disse Ele ao discípulo amado. E desde então, Maria se tornou refúgio dos órfãos de alma, consolo dos que perderam o nome da esperança. Eu sou um desses. E por isso escrevo.

Assim como Maria disse sim ao anjo, tu disseste sim à cruz dos dias. Geraste-me com o ventre, mas me recriaste com teus joelhos dobrados, na oração silenciosa que me manteve vivo mesmo nas horas de minha perda. A maternidade é um sim constante, como o sim de Maria que ao aceitar ser mãe de Cristo aceitou também ser mãe da humanidade. Assim, tu, mãe, ao me gerar e ao me nutrir com teu amor, foste também a Mãe do Senhor em mim.

Escrevo a ti, Mãe, minha mãe de carne e lágrima. Mulher que renunciou a si tantas vezes, que perdeu a juventude para que eu tivesse um futuro. Mulher que se despiu de sonhos para cobrir os meus com mantos de fé. Que suportou o insuportável em silêncio, como Maria. Que fez do peito um abrigo para as minhas tempestades.

 O silêncio é o verdadeiro altar onde minha alma repousa. Nele, o martírio se consome, a dor é purificada, e a voz de Deus ressoa. Como o silêncio da Virgem Maria, que não disse nada ao pé da cruz, mas falou tudo com seu olhar. Como os santos que, em seu silêncio, transformaram o mundo. O silêncio é o lugar onde a alma é moldada, onde a dor é levada e onde a paz divina se faz presente. 

Sim, eu te escrevo antes que seja tarde. Antes que meu corpo ceda e minha alma parta. Não sei quando virá a noite final... se ao cair da tarde ou na madrugada esquecida... mas sei que, quando ela vier, quero que estas palavras estejam contigo. Para que saibas que teu filho entendeu. Que viu. Que te amou.

Confesso: sou o filho marcado. Não pela grandeza, mas pela dor. A cruz deitou-se sobre meus ombros, não como coroa, mas como escola. E nela aprendi, aos tropeços, a linguagem muda do amor que se dá sem retorno.

 Minha alma foi como pão partido em silêncio, como hóstia que se entrega sem se defender, em cada sacrifício silencioso e cada lágrima. Fui forjado no altar de teu amor, e como o Corpo do Senhor, me ofereci em cada gesto de amor que partilhamos. Assim como Ele, meu sacrifício não busca glória, mas é o silêncio redentor de quem, na humildade, se entrega por amor. 

Não fui forte, tampouco justo. Fui pequeno, frágil, quebrado por dentro. Mas mesmo assim, Deus me deu a vida como dom: um sopro breve entre as pedras do caminho. E nesse dom, Ele me deu a ti. Sim, Mãe. De todos os tesouros que o Céu ousou confiar-me, teu nome foi o mais puro. Foste o meu chão quando eu tremia, minha luz quando tudo era escuridão.

Eu sou, e sempre fui, a tua missão. Desde o primeiro choro até os últimos silêncios, fui o campo onde tua fé floresceu entre lágrimas. Cada prece tua foi semente em meu deserto. Mas agora, esta missão está por se cumprir.

 Lembro-me das noites em que velavas minha febre em silêncio, colocando sobre mim o pano quente com mãos tão firmes e carinhosas, como a mãe que cuida, sem esperar recompensa. O cheiro do teu amor era o calor do aconchego, e em cada gesto simples, eu sentia a força do sacrifício silencioso que fazia de ti uma heroína sem capa. Tu foste a minha fortaleza, e mesmo nas minhas dúvidas, sabias como me acalmar com uma palavra ou um gesto. Mesmo quando a vida me parecia escura, era o teu amor que trazia a luz. 

E quando ela enfim se encerrar, não chores demais. Não te sintas perdida. Pois teu filho, que tantas vezes se perdeu, se recolherá, com esperança, nos braços de Maria. Ela, a Mãe das Mães, me acolherá como acolhe os pequenos que ainda precisam ser lavados pelo fogo do Amor.

Talvez eu não vá logo ao Céu. Talvez me espere o purgatório... esse lugar de misericórdia onde as almas se purificam antes de ver o rosto do Pai. Mas mesmo de lá, mesmo no silêncio ardente do tempo que resta, pedirei por ti.

Peço a Ela, Maria Santíssima, que não se esqueça de ti, minha mãe na terra. Aquela que me gerou com dor e sustentou com fé. Que Ela te ampare com ternura. Que me ensine a rezar por ti com mais fervor do que nunca.

 Ó Mãe de Deus, que em teu coração puríssimo abraçaste toda a dor do mundo, olhai por mim. Em minha fragilidade, busco teu auxílio. Não permitas que eu, em meu egoísmo, falhe com aqueles que mais amo. Maria, refúgio dos aflitos, estende tuas mãos sobre minha mãe e sobre todos os meus entes queridos, como estendeste aos teus filhos na cruz. Que a tua ternura nos envolva, e que, mesmo em nossos maiores tormentos, possamos ver em ti o consolo da promessa divina. 

Porque mesmo purificando-me, serei teu filho. Mesmo longe, estarei contigo.

Eu deveria ter amado mais, agradecido mais, estado mais presente. Rezo, agora, por aquela que partiu: minha tia querida. E por outra que, mesmo sem me gerar, desejei um dia ser filho seu. Ela me acolheu como mãe, e assim a chamo. São duas mulheres que marcaram minha alma com ternura e coragem. A elas, meu perdão, minha gratidão, meu amor.

Se hoje escrevo com palavras que doem, é porque elas vêm do fundo de uma alma que está cansada, mas que ainda se curva para agradecer. O mundo foi cruel, mas Deus me deu uma mãe. O mundo me expulsou, mas Maria me recolheu.

A todos que leem, deixo este clamor: cuidem de suas mães, das mulheres, de todas as Marias escondidas no cotidiano. Amar a Deus exige amar aquelas que geram vida. Trair uma mulher é cuspir na cruz. Maltratar uma mãe é ferir o coração da Mãe de Deus.

E eu, que já fui tido como perdido, enfermo, desajustado, louco, afirmo: tive a mãe certa. Conceição. Nome de milagre. Nome que carrega em si a Imaculada. É por ti que ainda respiro. É por ti que tento, que insisto, que rezo.

E se este for meu último escrito, quero que saibas: eu fui um filho feliz. Eu tive a melhor. E minha morte, se vier logo, não será derrota. Será entrega. Tudo que vivi, vivi contigo. E se não vivi tudo que sonhei, não foi tua culpa. Tu me fizeste viver o bastante.

Não quero flores. Quero orações. Não quero homenagens. Quero silêncio e memória. Quero tua vida em paz, mesmo sem mim. Quero estar ao lado de Maria, no purgatório ou onde Deus permitir, rogando por ti, protegendo-te como pude.

Se ainda respiro entre os homens, é por uma graça severa. Não para brilhar, mas para arder em silêncio, como um círio esquecido no canto de uma capela vazia. Já não busco o heroísmo dos altares visíveis. Prefiro a agonia doce da oração sem fim, a oferenda oculta que se consome no escuro. Como Kolbe no frio da cela. Como Cristo entre sombras. Desejo apenas desaparecer na chaga dos esquecidos, amar em segredo, morrer gota a gota por almas cujo nome jamais saberei.

E se a partida me alcançar, que venha como um perfume antigo evaporando-se no quarto de um moribundo. Não chores por mim, mãe. Teu filho foi colhido como uma flor noturna e se recolheu ao ventre da Mãe Dolorosa. Ali, onde os silêncios rezam e as lágrimas se tornam salmos, continuarei. Pálido, talvez, mas inteiro. Queimando meu ser em súplicas mudas, até que, como disse São João da Cruz, no entardecer da vida sejamos julgados pelo amor.

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