Carta aberta: Para aqueles que ficaram e para aqueles que se foram.

"Para aqueles que ficaram e para aqueles que se foram."

Eles podem ser o oposto de mim, seres que vagueiam em diferentes sintonias, talvez sem enxergar a mesma beleza que eu vislumbro na noite fria e simples, quando os mínimos detalhes a transformam em algo especial. A amizade, ah, ela é o tesouro supremo, a mais preciosa riqueza que o coração humano pode abrigar. Na última noite, em devaneios desconexos com a minha própria realidade, encontrei a alegria que me preenchia.

Ao imaginar suas histórias, mergulhei num oceano profundo, além das dimensões do tempo e do espaço. Não me importava com as profundezas que aquelas narrativas me conduziam, tampouco se nelas aprenderia algo ou não. Apenas desejava nutrir meu espírito com suas tramas, embora jamais me visse inserido nelas, pois respeito demais suas lembranças para roubá-las. As histórias em que eu estava, revisitá-las não se tornava exaustivo, podia repeti-las incansavelmente, como uma lembrança sempre renovada.

E a singeleza do cuidado que cada um dedica a mim é uma virtude preciosa, um bálsamo imprescindível para a alma humana. Podemos não compartilhar a vida noturna e diurna lado a lado, mas a simplesza de um gesto de ajuda, ah, jamais se apaga da memória. Nem sequer deveria ser chamado de "ajuda", e sim de gentileza.

Os risos que adentraram meus ouvidos encontram guarida em meu âmago, e, se possível, os levaria comigo além dos limites da morte. Ainda que o além não se apresente, quero que todos saibam que fui feliz e que jamais me senti só. Observar a todos vocês é como transcender a mim mesmo, perambulando mentalmente por sonhos alheios, adentrando vales de almas magníficas. Detalhes, minúcias, capto cada passo, cada gesto eloquente de suas mãos, o brilho intenso de seus olhos, porquanto desconheço quando poderei vislumbrá-los pela última vez. Necessito extrair ao máximo os frutos desse encontro, rir até a exaustão, cometer quantos deslizes verbais forem possíveis, deixando-me capturar como uma estátua em fotos, rogo-lhes que preservem essas lembranças, para que um dia, os filhos e netos, herdem a oportunidade de indagar sobre mim. Afirmem-lhes que ocupei um lugar especial em suas vidas, para que, tal como eu, possam nutrir amizades com almas afins, em meio ao mundo, onde tantos se escondem por temor ou temor à rejeição. Muitos desconhecem o que é o verdadeiro amor e a pureza que uma amizade autêntica pode conferir, mas vocês, ah, vocês me ensinaram.

Que as sementes que plantaram germinem exuberantes nos jardins das almas enfermas, como o fizeram na minha. Quando meu corpo se agitava, não era pelo frio, mas pelas dores que ousava ocultar, para que a noite não findasse, e pudesse permanecer ao lado de cada um. Durante toda a existência, a dor me acompanhou, contudo, junto de pessoas que amo e admiro, ela se transmuta em anseios, esperança, fé e força, para que eu esteja presente, mesmo quando a presença física não se faz possível.

Encontro-me com vocês por breves instantes, minutos ou horas, uma vez ao ano, e ainda assim, transbordo de felicidade, pois compreendo que estou vivo e que a existência vale a pena ser vivida. Sentir a virtude e o valor que emprestam à minha presença é o que me impulsiona a seguir, a continuar neste viver. Aprendi que não cheguei a conhecer todas as pessoas destinadas a me amar, a ansiar por esse amor que aguarda ser desvendado. Posso ser autossuficiente, encontrar prazer na solidão, dispensar a companhia de amigos, mas jamais desejo, tampouco almejo, a desventura de estar privado de vocês, nem mesmo pela eternidade, quando a solidão seria algo indesejado.

A lição que a vida me ofereceu é que, para ser amado, devo amar. Para trilhar os caminhos do evangelho e seguir o maior dos mandamentos, o amor, devo me cercar de todos que compõem este vasto universo, sobretudo daqueles que desejam compartilhar a jornada ao meu lado. Nem todas as palavras do mundo seriam suficientes para retribuir todas as mudanças, toda a bondade, gentileza e revolução que impuseram em minha vida. Encontrei, pois, apenas uma forma de expressar minha gratidão: rezar noite e dia, clamando aos céus, derramando lágrimas como nunca antes, rogando para que vocês vivam plenamente, aliviando o peso das dores em suas convivências, e nunca se sintam impotentes diante das agruras que a vida impõe.

Mesmo que Aslam não se revele, quero crer em Aslam. Mesmo que alguns não acreditem, minha crença é partilhar o pão e o vinho com todos vocês. Rezo para que obtenham aquilo que me é inacessível, que recebam em dobro tudo o que me ofertaram: amizade, esperança para viver, saúde para não padecer, para que sigam suas jornadas com o máximo de plenitude. Talvez, em algum momento, eu não esteja ao lado de vocês, não por estar morto, mas porque nossos caminhos nos conduzirão a distâncias significativas uns dos outros. Todavia, saibam que vocês ocupam um lugar de destaque em meu coração, e jamais se esqueçam - "Nem tudo está perdido como parece... sabe, coisas extraordinárias só acontecem a pessoas extraordinárias, vai ver é um sinal de que vocês têm um destino extraordinário, algum destino maior do que vocês podem ter imaginado. (C. S. Lewis)"

24 de julho de 2023