O que restou de Madeleine
Todos os dias desperto envolto em um cobertor de melancolia, sentindo aquela sensação melódica, enquanto Erik Satie desperta seu piano ao fundo, atravessando as portas de vidro, rompendo a quarta parede deste cenário teatral escolhido por mim: o Teatro Municipal de São Paulo. Recordo-me da primeira vez que me vi diante desse monumento colossal, embora não tenha adentrado. Parece ser o ambiente condizente com minha natureza. Nasci distante de tudo o que considero vital em minha existência: a música, o teatro, a literatura, mestres que me ensinaram a arte da escrita. Foram os mortos que me instruíram, pois os vivos apenas me apresentaram palavras, sem jamais ensinar-me a utilizá-las. E agora, adulto audaz, compreendo por que jamais me mostraram este mundo fantástico.
O que posso dizer sobre os ditos adultos, sempre tecendo mentiras por onde passam, dentro de seus lares, nas esquinas, nos edifícios públicos e talvez até nos consultórios de psicólogos? Em todos os lugares que percorri, a maioria desses adultos proferia palavras vazias, malditas, que não ousavam pronunciar em voz alta. As palavras verdadeiras jaziam aprisionadas no âmago mais profundo de seus seres, usadas apenas para ocultar seus pensamentos mais sórdidos e desumanos. A diferença entre eles e figuras como Hitler, Winston Churchill ou Mussolini é mínima. Estes tinham a coragem de serem o que eram, não se escondiam covardemente por trás de uma mesa ou de um sorriso falso. Não sentiam a necessidade de esconder suas piores versões. Na verdade, eles eram a própria personificação do inferno em carne e osso. Se desejam ser demoníacos, que o sejam com autenticidade, abandonando essa atuação de segunda categoria. Não conseguem atuar, não conseguem se expressar, e tudo o que testemunho é lamentável. Enfrentem o verdadeiro abismo; as consequências não são leves, e não haverá perdão para suas almas.
Teria imenso prazer em ouvir o quão nefasto, egocêntrico e presunçoso sou. Talvez eu seja um impostor, e seria uma grande satisfação em minha vida ouvir tantas e tantas palavras que ecoam nas mentes de muitos. Seria gratificante saber quem sou realmente, ou então não seria verdadeiramente humano. Ninguém seria real, ou será que todos são divinos a ponto de curar minha melancolia? Gostaria que fosse possível, mas são tão falíveis quanto eu. A diferença é que não sou cria de Baphomet. Ou sou? Essa conclusão não me ocorrerá de imediato. Lembro-me da única verdadeira, ou da criação do ego grotesco que habitava nela, e que habita em todos nós.
Madeleine foi o que eu poderia chamar de fascínio, um infortúnio gracioso e uma sonata inesperada. Por um breve período, estive obcecado por ela, pensando nela todos os dias, lendo-a. Foi a única vez que ela me escreveu uma carta desagradável, recebida naquela tarde inesquecível de outubro. O ano, mantenho em particular. Foi um dos piores textos que li: mal escrito, cheio de rasuras, rasgos e amassados, como se ela o tivesse escrito com ódio. E eu podia sentir as notas que o coração dela tocava, intensas, mortíferas, e amei toda aquela poesia. Claro que não era uma poesia; era grotesco, mas em minha mente, foi poético. Se ao menos pudesse ler aquela carta novamente, onde tudo era verdadeiro. Tudo o que ela pensava de mim estava ali, escrito. Podiam ser palavras verdadeiras ou apenas a manifestação de uma mente controlada por sentimentos moribundos e duradouros, que a abraçavam enquanto dormia, e se dissipavam ao despertar. Intrigante, foi exatamente o que testemunhei com a rapidez com que a escuridão é capaz de ofuscar nossos olhos. As nuvens obscurecem o pensamento e, sem recuar, esquecem quem amou. Num instante, palavras são soltas ao vento e no coração são plantadas.
Madeleine foi quem me ensinou a escrever, e o amargor do amor foi o ingrediente essencial; cada gota, cada colher, cada pitada de um amor egocêntrico e falho, assim como o que construí com minha própria insanidade. E aquele gentil anjo que caiu em meus braços não era fascinante, não no sentido dos romances de Jane Austen. Não era minha visão, nem minhas palavras que ecoavam em sua mente ou que eram registradas em papel. Tudo não passava de um engano, uma ilusão. O verdadeiro fascínio residia na construção de uma experimentação doce, uma dança majestosa, que poderia ser real em uma utopia. A realidade em que vivemos não permite um ato shakespeariano. Não podemos nos tornar moscas e pousar nos lábios de Rosemere, nem encenar a morte prematura de Ofélia, ou o suicídio de dois amantes. O ato pode ocorrer, mas não no sentido literário. Imagine o horror ao ler nos jornais sobre defuntos amontoados, em uma sala sem reboco, roupas desgastadas, vítimas da pobreza perpetuada pela ditadura burguesa. Não morreram por serem proibidos de amar, mas pelas consequências de um sistema capitalista arcaico.
Na forma como vivemos, neste modo de produção, tudo o que poderia ser romântico foi esmagado e tornou-se um estigma para a sociedade, enquanto a beleza se transformou em ilusão perpetuada por uma indústria fugaz e horrenda. Hollywood, com sua busca incessante pelo lucro, transformou a sétima arte em uma mera mercadoria enriquecedora. Toda a inspiração no amor está contida em telas, filmes, séries ou na literatura clichê de Nicholas Sparks. Tudo tão imaculado e glorioso, onde todos têm tempo, sem preocupações com a fome ou a produção de seus trabalhos e estudos. São apenas detalhes efêmeros. A vida, o romance, tudo é efêmero. Como poderíamos chamar de amor uma ficção? Não é intrínseco, e nos espelhamos nisso, consciente ou inconscientemente, como se fosse uma receita para viver e amar, sem nos preocuparmos com mais nada. O que resta fora do mundo das ideias são frustrações, um número crescente de homicídios, por não corresponderem à pornografia ou ao mundo fantasioso do cinema e da literatura capitalista. Uma realidade perfeita, com casais absurdamente belos. Como poderíamos amar enquanto somos expulsos pelo capitalismo? A exploração esmaga o ato de viver, a dedicação ao amor. O que Shakespeare chamaria de amor, ou talvez, o ato de amar, como Nietzsche proclamou, sem amar os desejos e sim o amado? E o que resta para desejar, além da mercadoria, que nos destrói e corrompe? O que resta para amar, além da ilusão causada pela exploração?
"Com esforço, um dia alcançaremos a vida desejada, amaremos nossos amados e nossos filhos, mas o que nos aguarda em nosso leito de morte, atrás da porta, debaixo da cama ou sobre nossos ombros, é a imaculada morte, mostrando na televisão cada segundo de uma vida desperdiçada enriquecendo homens que talvez amassem verdadeiramente se o lucro não fosse sua grande e estimada amante". O verdadeiro sentido do trágico reside nos dilemas e causas que roubam nossa vitalidade, nos obrigam a fazer o que não desejamos, a ser o que não somos; não sou o que visto, não sou meu trabalho, não sou meu salário, não sou uma mercadoria, não sou absolutamente nada do que esse sistema diz; sou o que sou, o que escrevo, o que absorvo em meus estudos, e as ideias saltitantes que pulam fora da caixa preta.
Além disso, não posso ignorar o lado mais sombrio de uma sociedade capitalista que ama de maneira fugaz, sem autenticidade, graças ao patriarcado, ao racismo estrutural que marginaliza e descarta o amor negro, uma forma singular de amar, abordada nas músicas de Djonga e Baco Exu do Blues. As distorções no amor, assim como na imagem masculina e feminina, como o caso das Manic Pixie Dream Girls, criadas apenas para inflar o ego de diretores e escritores, transformando o feminino em objeto, enquanto são silenciadas e existem superficialmente, apenas para servir aos protagonistas desajustados, vivendo uma vida atípica, introvertidos e cheios de falas desnecessárias. Quando se enquadram no padrão MPDG, servem sem questionar, sem ponderar sobre sua própria existência, tornando-se meros suportes para atender todas as demandas de um homem estranho, que é tudo o que eles sonharam e tudo o que queriam. São "independentes" de um estilo único, normalmente ouvem as mesmas músicas, seguem uma moda violenta, meiga ou diferente de tudo, para que a indústria da moda se aproprie e venda, tornando-se mercadorias. Tudo o mais é superficial; há um mistério sobre a vida da MPDG, sem sonhos, sem desejo de viver. Não são protagonistas de suas próprias vidas, existem apenas para servir à figura masculina, tornando o mundo estúpido e patético desse homem mais colorido, atendendo também seus desejos sexuais e descartando tudo o que poderiam desejar. São dependentes umas das outras e criam mais um clichê para os filmes. E o mais repugnante é jogarem isso na cara dos jovens e das mulheres, para torná-los submissos à figura masculina, apenas para alimentar os desejos mais sórdidos de uma sociedade machista.
Talvez tenha cometido o erro de pensar que Madeleine seria uma Summer, ou diversos outros estereótipos, mas estava longe de ser uma MPDG, estava mais para Elizabeth Bennet. Ela era uma mulher real, com defeitos acumulados, e o que esperava dela eram seus defeitos escancarados, transformados facilmente em poesia. O mais belo de tudo era sua falta de coragem; seus medos eram visíveis e desprovidos de arquétipos ou padrões criados por homens. Não a via como inferior, nem como uma mulher em perigo. Ela era suficiente e capaz de ter sua própria singularidade, criar suas próprias versões, sem precisar da aprovação masculina. Nunca precisou de aprovação para se conectar consigo mesma, para ser quem escolheu ser, para construir sua própria realidade. Poderia facilmente compará-la às heroínas da União Soviética, firmes em suas convicções e no que acreditavam, de rosto intimidador e tão inteligentes quanto Nadejda Krupskaia. Sua personalidade única, livre como o vento, embora repleta de medos e fraquezas, era tão corajosa quanto Marina Raskova. Lembro-me de sua astúcia e frieza em suas decisões, capaz de tudo para permanecer viva, embora nunca pudesse chamá-la de Portnova, por nunca ter matado um nazista. Não posso compará-las, pois não existe apenas um arquétipo, um padrão a ser seguido; todos somos únicos, com personalidades diversas, mas nunca idênticas.
O fascínio em Madeleine residia em sua diferença de tudo o que já observei e analisei em toda a minha vida. Parece irônico sugerir que poderia estar criando uma MPDG depois de criticar algo tão superficial e nocivo, mas seria impossível. Não quero alimentar meus demônios buscando um padrão; trata-se apenas de uma experiência, tudo o que passei com ela, e acredito ter sido o mesmo estudo social e psicológico para ela. Dois egocêntricos em discordância, dois egos em pé de guerra, envoltos em uma revolução, trocando insultos irônicos, porém inteligentes, repletos do humor único de ambos. Existem tantas outras histórias para contar, tantas críticas que fizemos ao capitalismo e a tudo o mais mencionado, que não foram abordadas em profundidade, assim como a mente dela, sua aparência, que pouco importa, e o mais interessante, sua história. O amor é marxista e, sem a crítica, sem a revolução, não existe amor para ser construído. O que resta para todos nós é apenas uma idealização construída superficialmente pelo capitalismo e na qual nos espelhamos. Jung explicaria melhor.
Por fim, o fascínio em Madeleine residia na experiência vivenciada e minuciosamente observada. Sabíamos que não seria duradouro, não pelo que entreguei a ela e traduzi. O que me restou foi a experiência do que chamei de perfeito, do falho, pois o ato de falhar é o mais belo da literatura. Não recordo o que poderia citar como falho; se a desistência é o que considero um trabalho bem feito. O que espero é falhar inúmeras vezes no futuro. Não no amor, pois nele o fracasso é inevitável; fracassamos em sermos quem somos, e tudo o que tocamos retorna ao pó. De todas as falhas, meu acerto foi Madeleine. Nada do que estou construindo teria sentido sem as palavras de Madeleine: "Escreva, escreva e escreva", como Jenny para Forrest: "Corra, Forrest. Corra". Talvez estivesse paralisado, sem sonhos para recorrer, e com a morte como única solução. No momento, me encontro sem um propósito para escrever, para viver a vida que nunca imaginei ter, embora já a tenha. A questão da percepção é distante; sinto-me sem propósito para explorar meu potencial. Não tenho Madeleine para me socorrer, mas não preciso ser salvo. Nunca precisei, assim como ela nunca precisou.
O meu fascínio por ela é uma ficção, apenas um alter ego criado do que morreu em minha mente, ou o que dela restou, apenas lembranças fragmentadas e o que ocultei de todos. Na verdade, misturei-a com o dispensável, encaixotei-a com outras lembranças, experiências fracassadas, e queimei tudo na fogueira que fiz sob as estrelas, na tentativa de renascer repetidas vezes, com novas personalidades, prontas para construir uma nova identidade. Talvez a solução para todos nós esteja no fogo, na ação de dançar em volta das chamas, de jogar o meu corpo nas brasas, envolver-se nas cinzas e purificar a alma. Estou prestes a entrar em combustão, a morrer para renascer das cinzas, a ser ressuscitado, mais uma vez, apenas para cochichar as minhas últimas palavras: "Caso não nos vejamos novamente... boa tarde e boa noite".
H.a.a.
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